27 de novembro de 2010

Costura de palavras

É próprio do sonho ser volátil. Tenho alimentado meu espírito com imagens tecidas magníficas, coisas que me vêm quando lanço ao mar minha rede desejosa de capturar não o peixe, mas o cintilante movimento de sua escama. Pescadores mais afortunados do que eu será que sonharam seus peixes imateriais antes de atá-los às  iscas do urdume?
Levantei hoje com um projeto têxtil todo construído enquanto dormia. Hypnos sussurou em meu ouvido fiapos de memória, palavras antigas, ambições recentes e rascunhou tudo com materiais comuns. Aqui um fio felpudo que dança ao menor sopro, ali o fio de cobre que reforça o esqueleto, acolá a remoção calculada da urdidura para construir janelas que se abrem para o éter ou para um trigal ou para uma duna ou para uma tempestade. Como tecer uma tempestade? Transferir para as mãos que separam as calas e conduzem as navetes carregadas de fios torcidos e retorcidos com cores que se misturam para criar uma imagem que não vi, ninguém viu, mas que precisa existir para fazer sentido?
Minha mão parece estar amarrada e, para não perder o têxtil apenas alinhavo de idéias, costuro aqui as palavras para não botar tudo a perder e desmanchar meu sonho como faço quando puxo o fio ao crochê desalinhado.

21 de novembro de 2010

Cardigã do Léon

Quando me propus a tricotar este cardigã, pensei que as tranças e o bolso embutido me dariam trabalho. Ledo engano, a modelagem é quem deu. Não ficou boa, na verdade, e tive que improvisar com fita de gorgurão um reforço nos ombros e no decote para que eles não ficassem tão desabados. Voilà! Eis a minha blusa do Léon.
Léon K. foi meu professor de Estética na faculdade. Durante suas aulas ele fazia circular entre os alunos belos volumes da Skira de sua coleção particular. As reproduções ainda eram coladas uma a uma nas páginas mais escuras e encorpadas da encadernação, uma preciosidade. Era assim que ele ilustrava seus comentários. Não havia, na época, a fartura de livros de arte que encontramos hoje em nossas livrarias (a Livraria Cultura era só uma lojinha e Jeffrey Bezos ainda não tinha sonhado com a Amazon.com). Imagino-o no aeroporto, voltando de suas viagens, sempre com o mesmo cardigã e as malas repletas de livros. Eram dele uma expressão aguda e sorridente feita de pequeninos olhos azuis e uma maneira peculiar de dizer "muita vez".

V.V. (para quem fiz a blusa, o cachecol e o gorro) também foi aluno desse professor. Quando saímos para garimpar livros nos sebos próximos à Fnac, fazemos pilhéria com a possibilidade de estarmos comprando os livros do Léon. Quero crer que esses volumes que hoje atulham nossa biblioteca não trocaram o endereço dele pelo nosso, mas certamente eles foram de alguém. Alguém os amou intensamente por um tempo e depois os abandonou. Sorte tivemos nós, que não tememos as traças e gostamos de acolher livros usados.

13 de novembro de 2010

Reflexão sobre tapeçaria

Todos os nossos gostos e inclinações pessoais nos vêm de maneira indireta. Nada de muito racional. A decisão de perseguir essa inclinação primeira vem depois. Somos tocados por uma atitude, um filme, uma roupa, uma piada, uma inveja, um elogio, uma canção, uma conversa, uma história, a lista não tem fim. Jamais procurei no meu passado a razão pela qual gosto de Idade Média, embora desconfie a razão pela qual gosto de tapeçaria. Posso revelar: adoro quadros, mas detesto tinta, aquela coisa pegajosa que escorre. Sempre gostei de trabalhos manuais (tricô, crochê, bordado). Quando descobri que se podia construir arte com fios, a paixão foi imediata. Quadros podiam ser bordados ou tecidos, enfim. Mas o encantamento durou pouco, pois quadros têm o seu veículo próprio: telas e tintas. Van Gogh era capaz de pintar teares lindamente, mas desse-lhe um tear para operar talvez ele produzisse um punhado de nós. Mal comparando, para quê plantar alfaces cavando buracos com bisturis?
Então era isso, a tapeçaria era só a atividade de gente invejosa da pintura? Insatisfeita, fui estudar e encontrei artistas que não são nem nunca quiseram ser pintores. Suas tapeçarias são focadas nelas mesmas e refletem um diálogo com os materiais têxteis que lhe são próprios. Pouco importava se a tapeçaria era figurativa ou abstrata, bi ou tridimensional, costurada, bordada, crochetada, tricotada ou tecida. Foi grandioso! Enfim a Tapeçaria com inicial maiúscula, liberta da pintura.

Essa imagem que ilustra a postagem bordei sobre talagarça usando meio-ponto e casa-caiada. Trata-se da composição de imagens que recolhi em diversas iluminuras medievais. No original, a dama à direita tinha a linha preta do contorno do cabelo lindamente verde no interior da mancha de cor, como se os fios fossem soprados pelo vento. Impossível reproduzir em talagarça sem que minha gentil dama parecesse uma Medusa. Em tear ficaria muito bom, hoje o sei.
Quando bordei, a tapeçaria ainda não existia para mim com linguagem própria. Por isso a bordei. Hoje as coisas se complicaram, pois, para ser coerente, ou não bordo, ou salto o círculo de giz e vou fazer outra coisa.

9 de novembro de 2010

Tapeçaria: um pouco de história

Desenho feito pelo artista plástico Wanderley Ciuffi
Tapeçaria de Tear
Quando se fala em tapeçaria artística, é necessário definir qual técnica temos em mente. A mais prestigiosa é sem dúvida aquela tapeçaria mural figurativa que os flamengos (da Flandres belga e francesa) trabalharam à perfeição. Manufaturada em enormes teares de alto ou baixo liço, o nome que mais associamos a esse tipo de tapeçaria é Gobelin. Esse nome pertencia ao hábil tintureiro que fornecia a lã necessária  para a confeccção das tapeçarias que cercavam de luxo a nobreza francesa. Mais tarde, a oficina que produzia essas tapeçarias para o rei chamou-se Manufacture des Gobelins.
Essas tapeçarias eram muito cobiçadas, pois conferiam enorme status a seus possuidores. Seu preço era altíssimo e os nobres se vangloriavam de possuí-las às dezenas. Forravam com elas as paredes frias de seus castelos, escondiam portas e janelas, serviam de biombo, enriqueciam o dote de princesas, guarneciam até cabines de navios. Aqueciam os ambientes. Quando a corte partia para alguma aventura, lá se iam as tapeçarias para os baús que as transportavam não sem dano. A pintura mural, nessa época, era a "prima pobre" da tapeçaria, já que seu custo era baixo e ela possuía a enorme desvantagem de não ser portátil. Os pintores, então, passaram a fazer projetos para serem transpostos em tapeçaria. Estávamos no Renascimento e grandes artistas emprestaram seu talento para com as tintas para o âmbito têxtil. A técnica necessária para traduzir com fios algo que foi pensado com tinta nunca foi tão apurada. A tapeçaria conheceu seu auge. Paradoxalmente, o grande esplendor que a tapeçaria alcançou com essa contribuição acabou por esterilizar e enrijecer o talento dos verdadeiros tapeceiros, daqueles que pensavam em termos de trama e urdidura, daqueles que buscavam soluções têxteis para problemas têxteis. A tapeçaria virou cópia da pintura. O gosto declinou. A tapeçaria quase morreu.


Jean Lurçat (1892-1966)
Foi ele o responsável pelo "renascimento" do interesse pela tapeçaria numa ótica moderna. Ele procurou simplificar e padronizar o conhecimento técnico necessário à produção de tapeçaria e reconduzir a feitura do cartão para o artista-tapeceiro detentor de uma linguagem artística própria.  Estava aberto o caminho para que a arte moderna se apossasse dessa antiga técnica e a colocasse num novo patamar. Ele foi pintor, ceramista e tapeceiro. Antes de mandar tecer suas tapeçarias nas grandes oficinas remanescentes da grande época da tapeçaria, ele as mandava bordar por sua mãe ou esposa. A tapeçaria também se exprime no bordado.

Tapeçaria de Agulha
Menos prestigiada que sua irmã tecida, a tapeçaria bordada sempre esteve mais associada à decoração, à feitura de almofadas e estofamento de cadeiras. Poucos artistas elegeram-na como veículo para suas criações. (Temos Genaro de Carvalho, Madeleine e Concessa Colaço no Brasil). Borda-se geralmente com lã sobre talagarça, juta ou tecido e deve-se recobrir toda a superfície do trabalho com pontos de agulha. Existem numerosos pontos que se podem usar, sozinhos ou misturados. Há uma complicação adicional, já que um dos pontos mais populares que dispomos para bordar a talagarça também se chama Gobelin. O maior desafio para quem gosta desse tipo de tapeçaria e quer propô-lo como arte é desvincular sua feitura das cópias que se reproduzem aos milhares seguindo gráficos ou impressão prévia.

Todas as tapeçarias que ilustram essa postagem são de agulha e foram executadas por mim. Com exceção da primeira, projeto original de meu pai artista, as demais imagens foram colhidas em livros de história da arte. Elas decoram minha casa. Outra hora conto a história de cada uma delas.

5 de novembro de 2010

Fio matizado


Minha mãe sempre fez campanha contra brinquedo que brinca sozinho e não deixa espaço para a criança imaginar. Faz de conta que essa tampa é uma panelinha e este mato um banquete no Maxim's. Pronto, mastigávamos as azedinhas que mal e mal viam água. Modelar o barro, então, era a glória, pois tudo era possível. Tomei muito vermífugo para expulsar os excessos de minha imaginação ou as carências de minha condição, leia-se como quiser. Mas no tear, quando uso fio matizado (que eu adoro!), ele brinca sozinho e eu termino o pano me sentindo um tanto enganada. No tear manual, quando não se trabalha a padronagem, a graça está em misturar os fios para criar nos tecidos efeitos variados de cor, textura, transparência, brilho... Quando se usa o fio matizado a preguiça parece conduzir nossa mão.

1 de novembro de 2010

Tapeçaria Artística - Links II

Mais alguns links para ampliar a pesquisa anterior. Quem souber mais, contribua, pois conhecimento é um oceano com muitos mares. E dá-lhe vento e vontade para navegar. Eta que isso eu tenho!

França
O Institut de France é uma instituição acadêmica que agrega as mais prestigiosas academias nacionais daquele país. Em 2008, a Académie des Beaux-Arts produziu um colóquio sobre Tapeçaria Contemporânea Européia e chamou alguns especialistas para falar sobre o assunto. Compareceram artistas, historiadores, curadores, críticos, restauradores e todo pessoal interessado nesse assunto. Selecionei alguns textos que me pareceram muito instrutivos.
La Tapisserie du XXe siècle (Gérard Denizeau) - o texto desse historiador enfoca sobretudo Jean Lurçat
L'importance du mouvement de la "nouvelle tapisserie" depuis les années 70 jusqu'à aujord'hui (Françoise de Loisy) - fotos de tapeçarias contemporâneas

Europa transnacional
European Tapestry Forum: An artist-led tapestry initiative (Thomas Cronenberg) - relato das atividades desenvolvidas por este grupo
European Tapestry Forum - Site dessa associação de artistas

Polônia
Polish Fibre Art to the Threshold of the 21st Century (Jolanta Piwonska) - curadora do Museu de Lódz historia a contribuição dessa verdadeira vanguarda que foi a "escola polonesa" para a Arte Têxtil
Wlodzimierz Cygan - página deste artista contemporâneo

Noruega
I Love Tapestry - trata-se de uma galeria virtual com belos trabalhos contemporâneos

Suécia
Annika Ekdahl - site da artista com preciosas indicações na net

Finlândia
Aino Kajaniemi - página com o trabalho desta artista

Espanha
Liceras de Valdeolea - blog com o trabalho bem documentado de um grupo de artistas que trabalha nesta pequena cidade da Cantábria

Estados Unidos
Textile Society of America -  Fórum internacional sobre têxteis
The New York Guild of Handweavers - Site riquíssimo de informação sobre a guilda têxtil
Smithsonian - ver a coleção têxtil
The Gloria F Ross Center for Tapestry Studies - ver a impressionante galeria de artistas têxteis modernos

Uruguai
Aldo Rissolini - página do artista